Mais Camus, menos Trump, mais compreensão – 22/04/2025 – Opinião

Um homem com cabelo loiro e liso está sentado em uma mesa, olhando para frente com uma expressão séria. À sua esquerda, há uma vela acesa. O fundo é decorado com um padrão azul e dourado, sugerindo um ambiente formal.

Em 11 de janeiro de 1994, publiquei na Folha o artigo “Uma moratória com a utopia”, no qual defendia uma flexibilidade nas teorias da esquerda, porque as revoluções do século 20 não tinham mais possibilidades históricas de se repetirem. Todo o sentido desse artigo era “menos Lênin e mais Gramsci e Norberto Bobbio“. Michael Löwy publicara em 1978 um ensaio sobre o maio de 1968 na França e sobre as lutas entre 1968 e 1969 na Itália, que adicionadas aos grandes acontecimentos políticos a partir de 1974 —Revolução dos Cravos em Portugal e a transição do franquismo para democracia na Espanha—, abririam um novo ciclo de interesse sobre a “problemática das crises revolucionárias”.

Esse texto pode ser um clássico “dobre de finados” das grandes narrativas europeias, que ainda apostavam numa concepção revolucionária universal, cujo sentido era conformação na história, à época, de uma “democracia proletária”, alcançável pela via da “greve de massas”. Mas o proletariado ressecou, o sindicalismo vem sendo asfixiado e a grande novidade, no meio laboral, é o trabalhador autônomo das plataformas que querem a legalização do seu trabalho, independentemente de qualquer sistema estatal ou sindical que pretenda traçar os seus caminhos para enfrentarem um futuro incerto.

A época do artigo de Löwy era dos tempos longos e dos ciclos lentos, da modorrenta crise do socialismo russo, tempos da sua dissolução e da sua pretensa substituição por uma socialdemocracia transicional, em direção à liberdade, igualdade e fraternidade. Essa recuperação da história, segundo os otimistas da época, poderia contar, inclusive, com o abono de certas parcelas das classes da ricas sociedade, porque os “debaixo” já não queriam mais viver como viviam, e os “de cima”, muito ricos, já não mais poderiam viver como antes.

Essas expectativas foram por água abaixo quando a velocidade da História aumentou, as novas tecnologias informacionais-digitais passaram a dominar as mentes, a produção se acelerou em bytes e o capital financeiro se tornou um fluxo global, tanto de sinais como de dados e mensagens, que eram e são —ao mesmo tempo— produção e dominação. Esse fenômeno abriu o circuito das grandes “navegações” microeletrônicas, substituindo as “navegações” físicas que duravam séculos, décadas, meses, dias, pelas novas caravanas que, em minutos ou décimos de segundos, percorrem o globo terrestre.

Levam informações que podem chegar ao conjunto da humanidade tornando os ciclos cada vez mais curtos, tendendo fundir a História e o cotidiano, fazendo tudo que foi sólido (hoje) nuvem amanhã, e tudo que foi certo (ontem) sem serventia hoje: inútil, porque o futuro é sempre o agora, e o passado já não é mais o mesmo.

As ideologias morais e políticas sedimentadas em décadas desapareceram na centralidade do presente sem futuro, e o fascismo passou a impregnar de violência a velocidade que esteriliza as emoções e naturaliza os vínculos sociais como puras relações de força com sentimentos manipuláveis.

Dois grandes romances do século passado, “O primeiro homem”, de Albert Camus, e “Submundo”, de Don DeLillo, já anotavam, na literatura do grande romance, dois grandes temas da humanidade que já se abriam —ainda dentro do sistema total das grandes narrativas—, apontando para a dissolução dos padrões de convívio no capitalismo moderno. Ambos os temas, a imigração e o sistema de reprodução sociometabólica do capitalismo, foram então colados na vida comum: moldando novas percepções dos indivíduos e, ao mesmo tempo, revelando novos modos de sobrevivência com novas orientações para “modos de vida (in)conscientemente orientados”.

Os homens tolerantes sempre foram xenófobos nas questões relacionadas com a oferta do trabalho, diz Camus, ao referir às crises das classes trabalhadoras, para buscar empregos, com “atitudes bastante desconcertantes para os intelectuais das teorias do proletariado, porém bastante humanas e perdoáveis: não era o domínio do mundo ou os privilégios do dinheiro e do lazer que aqueles nacionalistas inesperados disputavam com as outras nacionalidades, mas o privilégio da servidão”. É o que presidente Donald Trump propõe hoje, ao mundo, como compreensão da história presente.

Don DeLillo olhou a sustentabilidade que nos serve, tanto para afastar as barreiras que nos separam da hecatombe soterrada pelo lixo das guerras e da produção quanto para dar continuidade ao sistema sociometabólico, que reproduz as tragédias ambientais. Diz um personagem do seu “Submundo”: “consumir ou morrer. É o imperativo da cultura. E tudo termina no lixo: geramos quantidades fenomenais de lixo, depois reagimos a ele, não apenas no plano tecnológico, mas também no emocional e no intelectual. Deixamos que que o lixo nos molde e controle nosso pensamento. Primeiro vem o lixo, depois construímos um sistema para lidar com ele”.

Talvez possamos dizer hoje —pela esquerda e sem medo de errar— que a estratégia épica é defender a sobrevivência da democracia junto com a República: “mais Camus, mais compreensão, menos Trump”.

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Fonte ==> Folha SP

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