Estamos testemunhando uma transformação no comércio internacional, na geopolítica e na tecnologia. A expressão “mudança de regime” tem sido muito frequente nos últimos dias. A crença predominante é que estamos diante de uma ruptura nas relações produtivas e políticas que reconfigurarão a economia global nos próximos anos.
A ausência de clareza nunca foi tão alta. O Índice de Incerteza da Política Econômica nos EUA, medido por Baker, Bloom & Davis, atingiu seu ponto mais alto desde 1985, superando em quase 100% o recorde anterior, da pandemia da Covid-19. Esse cenário de imprevisibilidade contaminou o mundo, elevando o Índice Global de Incerteza da Política Econômica de volta ao pico observado na crise sanitária.
Anualmente, na primavera do hemisfério Norte, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial realizam reuniões em Washington (EUA), para discutir a economia global e seus impactos regionais. Paralelamente, ocorrem encontros com gestores públicos, como ministros da Fazenda, secretários do Tesouro e diretores de bancos centrais. Neste ano, a mudança de gestão nos EUA, com a política tarifária do governo, foi o tema central.
O “tarifaço” de Trump é inédito: 10% no geral; 25% em alguns setores; e medidas tarifárias recíprocas “individualizadas”, elevadas em razão do tamanho do déficit comercial dos EUA com outros países. A China, com retaliação, enfrenta alíquotas superiores a 100%. As tarifas médias sairiam de cerca de 2,5%, no final do ano passado, para mais de 20%.
A maioria aposta em um cenário nos EUA de estagflação, quando há baixo crescimento com inflação elevada, devido ao choque de oferta causado pelo aumento das tarifas; e uma desaceleração mais acentuada na China, que enfrenta um choque de demanda.
Segundo o presidente do Federal Reserve (Fed, o banco central dos EUA), Jerome Powell, a política de tarifas é algo nunca visto na história moderna, o que leva a interpretar que o Fed navega em águas desconhecidas. Com taxas de importação elevadas e alta incerteza, o risco é o de crescimento fraco, desemprego alto e inflação acelerada. Recentemente, houve um descolamento entre expectativas de inflação, crescentes, e projeções de crescimento, que indicam desaceleração. Se a desaceleração for brusca, o Fed priorizará seu mandato em relação ao crescimento e poderá reduzir taxas de juros no segundo semestre. Ademais, analistas esperam uma política monetária mais cautelosa e reativa, o que poderá mudar o patamar da inflação nos EUA.
No Brasil, os membros do Copom têm sido cautelosos. Qual será o impacto das tarifas? Haverá recessão ou desaceleração suave? O choque de oferta afetará a inflação?
O Banco Central brasileiro está comprometido com a meta de inflação de 3%, ainda que em um horizonte mais longo. É possível esperar uma “desinflação oportunística” se a desaceleração global, especialmente na China, abrir capacidade ociosa na economia brasileira, ajudando a controlar a inflação por aqui.
Contudo, as medidas fiscais e parafiscais expansionistas anunciadas pelo governo desafiam o Banco Central. Com expectativas de inflação desancoradas e crescentes para o próximo ano, acreditamos que haverá mais uma alta da Selic na próxima semana, antes da pausa em junho. Se a desaceleração global e local se confirmar, o ciclo de corte de juros no Brasil poderá começar ainda neste ano, mais lentamente, considerando dois cortes nos EUA no segundo semestre.
Entretanto, os bancos centrais não podem resolver tudo. Trata-se de um ambiente no qual as instituições edificadas desde o pós-Segunda Guerra Mundial tornam-se mais frágeis.
Se a guerra comercial ganhar contornos mais suaves, com acordos bilaterais de comércio com Índia, Japão, China, União Europeia e Canadá e México (USMCA), as tarifas globais poderão ser mais altas que o padrão anterior, mas mais baixas que as anunciadas no “Liberation Day” —definição dada por Trump ao dia 2 de abril de 2025, quando anunciou as novas alíquotas tarifárias. Isso reduziria os impactos disruptivos nos mercados e na economia real. Caso contrário, as políticas econômicas globais precisarão se reposicionar rapidamente, devido a um possível forte rebalanceamento do fluxo de capitais entre as regiões do planeta.
Há uma quebra de confiança que levará países e regiões a buscar maior autonomia em energia, terras-raras, tecnologia (semicondutores), defesa militar e até em temas sanitários, como medicamentos e equipamentos hospitalares. Essa busca por autonomia tende a estar associada a conflitos geopolíticos.
As rupturas nas cadeias produtivas durante a pandemia deixaram um gosto amargo. Subsídios a setores estratégicos e tarifas irão reconfigurar as cadeias produtivas globais. A Europa já mudou sua abordagem, reforçada pelo estímulo fiscal trilionário anunciado pela Alemanha. A China irá endurecer sua postura comercial e militar e buscar refazer suas alianças, inclusive no Oriente Médio.
Os bancos centrais terão de lidar com temas nunca tratados nos manuais de economia. A quebra de regime tão comentada implica dizer que os incentivos econômicos não mais ditarão as relações comerciais entre as nações, e sim a estratégia de domínio de cadeias produtivas e de tecnologias estratégicas. Antever os possíveis impactos da inteligência artificial generativa sobre a produtividade global ainda se coloca como um desafio.
Em tempos tão incertos, a melhor reação para a política monetária passa por estratégia de reação transparente ao risco inflacionário, gradualismo e moderação.
Fonte ==> Folha SP