‘Para – Rio de Memórias’ une urbano e ancestral no teatro – 15/04/2025 – Mise-en-scène

'Para - Rio de Memórias' une urbano e ancestral no teatro - 15/04/2025 - Mise-en-scène

“Pa’ra – Rio de Memórias” realiza uma travessia entre o urbano e o ancestral, conduzida pela atriz de origem indígena Lenise Oliveira, que transforma suas memórias de infância em um espetáculo político e poético. Com direção de Marina Esteves, a montagem desafia estereótipos sobre povos originários e constrói uma linguagem cênica que mistura uma pesada realidade com fantasia curativa.

A protagonista Dalú, uma menina Sateré-Mawé que deixa Belém pela periferia de uma grande cidade, vive uma transição violenta: do convívio com a natureza para um mundo marcado por invasões, preconceito e apagamento cultural. Quando sua casa é invadida (uma metáfora para o colonialismo e a expropriação), ela inicia uma viagem simbólica pelo rio das memórias, guiada por Boldo, Alecrim e Capim-Cidreira – figuras que personificam a sabedoria da terra e a resiliência infantil.

Aqui, o teatro opera uma alquimia rara: fala de dor sem didatismo, de luta sem vitimização. A narrativa, embora centrada em uma experiência indígena, ecoa universal – é sobre qualquer criança periférica, migrante ou marginalizada que precisa reinventar suas raízes para sobreviver.

A cenografia evoca tanto a selva quanto o asfalto, criando um espaço liminar onde passado e presente coexistem. A trilha sonora, uma fusão de cantos Sateré-Mawé com brega e tecnobrega, é um acerto genial: traduz a identidade híbrida de Dalú, entre o tradicional e o contemporâneo, o sagrado e o popular.

Recusando o exotismo frequentemente associado a narrativas indígenas, em vez de “folclorizar” a cultura Sateré-Mawé, a peça a atualiza, mostrando-a como algo vivo, urbano e em disputa. Os seres ancestrais que Dalú encontra não são figuras estáticas, mas entidades ativas, que falam de luta e futuro, não apenas de passado.

Lenise Oliveira afirma que a peça é para “contar uma história dura, brincando”, e essa escolha é radical. Ao usar a linguagem lúdica (como os amigos-plantas e o rio de memórias), o espetáculo desarma o adulto e chama a criança a se reconhecer.

Três perguntas para…

… Lenise Oliveira

Como surgiu a ideia de transformar suas memórias de infância e sua vivência indígena urbana em uma peça de teatro?

Esse desejo partiu de um outro projeto chamado “Perspectivas Indígenas em Cena”, que teve a realização da Funarte e do Ministério da Cultura, com o apoio do Museu das Culturas Indígenas. Cinco mulheres indígenas de etnias diferentes deram oficinas em escolas da Rede Pública de São Paulo e durante esse trabalho, percebi que a visão das crianças sobre “indígena” era limitada a estereótipos — cocar, dança da chuva, pinturas — o que revelou para mim uma lacuna na compreensão da identidade indígena na sociedade atual.

Inspirada por essa experiência e por minhas próprias vivências como mulher indígena em São Paulo — incluindo desafios culturais, linguísticos e de adaptação —, eu crio um trabalho que vai abordar, de forma lúdica, a diversidade cultural. O que eu desejo com esse espetáculo é apresentar às crianças urbanas elementos como rios (muitos esquecidos na cidade), histórias tradicionais (como a da Cobra Grande), conexões com a natureza (clima, marés, comer manga do pé) e saberes ancestrais (constelações, ciclos naturais).

Dalú vive uma jornada entre o urbano e o ancestral. Como essa dualidade reflete a experiência de muitos indígenas que migram para as cidades?

Muitos de nós, indígenas, enfrentamos um grande choque cultural, social e econômico ao adentrar esse sistema. Ele nos impõe uma lógica em que precisamos estar constantemente produzindo, como se qualquer momento dedicado à ancestralidade — seja para meditar, cantar, rezar ou simplesmente refletir — fosse um tempo “perdido”. Vivemos sob a pressão de girar a engrenagem do capitalismo cada vez mais rápido, como bem discute Ailton Krenak em “A Vida Não É Útil”. Ele questiona essa chamada “educação” que formata as crianças desde cedo, restringindo sua liberdade de pensamento e as preparando apenas para reproduzir um sistema que destrói o mundo.

Quando cheguei a São Paulo, essa realidade me impactou profundamente. No meu território, a vida é feita de afeto: sorrimos, brincamos, compartilhamos comida, celebramos juntos. Aqui, vejo pessoas exaustas, sobrecarregadas pelo trabalho, com as relações humanas sempre em segundo plano.

Na peça, trago essa vivência através da personagem Dalú, que se sente sozinha nesse novo mundo. Ela embarca em um rio de memórias para reencontrar suas raízes, e em meio a esse mergulho, seus ancestrais lhe dizem: “Nós sempre estivemos aqui, dentro de você. Você nunca está só.” Quando me mudei para São Paulo, não vim sozinha — trouxe comigo todos aqueles que, no passado, sonharam e lutaram para que hoje eu pudesse ocupar este espaço. Essa é a força que me sustenta.

A trilha sonora mistura musicalidade Sateré-Mawé com brega e tecnobrega. Como essa fusão de sons contribui para a identidade da peça?

Na dramaturgia, a musicalidade é essencial para enraizar a cultura nortista, porque ela carrega em si a transmissão de saberes. Como diz a antropóloga indígena Clarinda Maria, entre os Sateré-Mawé, as mulheres cantam no território para ensinar as crianças — seja a língua, os afazeres ou seus próprios feitos. Da mesma forma, no ritual da Tucandeira, os homens entoam cantos que narram suas experiências, tudo na língua originária.

Meu desejo de incorporar o tecnobrega e o tecnomelody vem dessa relação orgânica com a cultura paraense. Desde criança, cresci imersa nesses ritmos — brega, carimbó, guitarrada —, que agora ressoam no espetáculo como um convite ao público para mergulhar nesse universo. A música é uma ponte: ela guia o espectador pela riqueza da cultura nortista, muitas vezes invisibilizada. Como diz o boné da Dalú: “O Norte existe”. E essa existência se afirma não apenas na dança ou na culinária, mas também na diversidade sonora que influencia até mesmo outros gêneros.

É isso que queremos com a peça: que crianças e adultos naveguem pelo rio de memórias de Dalú, embalados por essa trilha que une tradição e contemporaneidade. Uma construção feita a muitas mãos, para celebrar a potência de uma identidade que resiste e se reinventa.

Sesc Consolação- r. Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, região central. Sáb., 11h. Até 23/5. Duração: 50 minutos. A partir de R$ 12, em sescsp.org.br e nas bilheterias das unidades. Grátis para crianças até 12 anos.



Fonte ==> Folha SP

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