Veneno retrata dor da perda de um filho – 08/05/2025 – Mise-en-scène

Veneno retrata dor da perda de um filho - 08/05/2025 - Mise-en-scène

O silêncio da sala de espera de um cemitério em “Veneno” é tão denso quanto a dor que carrega. Ali, entre cadeiras impessoais, uma mesa e um bebedouro, dois fantasmas de um mesmo passado se reencontram— não por vontade, mas por obrigação burocrática da morte. O filho que perderam há dez anos precisa ser movido, e com ele, todas as feridas mal cicatrizadas que sepultaram junto ao corpo.

Ela (Cléo de Páris) permaneceu e enraizou-se no luto como quem se recusa a deixar um túmulo sem vigília. Seu sofrimento é quase um ato de resistência — contra o tempo, contra a vida que insiste em fluir, contra ele que supostamente fugiu. Há um orgulho amargo em sua dor, uma frieza que desafia qualquer tentativa de consolo. Ele (Alexandre Galindo), por outro lado, construiu uma nova existência sobre areia movediça. Fala de seguir em frente, mas seus gestos hesitantes, suas palavras medidas, entregam uma culpa que nunca o abandonou. A racionalidade é sua armadura, mas, a direção precisa de Eric Lenate, desmonta peça por peça essa couraça, revelando o que há por trás: um homem que não superou coisa alguma, apenas aprendeu a mentir para si mesmo.

Quando a explosão finalmente vem, é menos um confronto e mais um desmoronamento mútuo. Não há vencedores nesta guerra — apenas dois sobreviventes cambaleando entre os escombros do que um dia foram juntos. O que resta, no fim, não é reconciliação, mas um cansaço compartilhado. Um momento de trégua em que, por instantes, reconhecem no outro o mesmo amor e a mesma perda que os destruiu.

“Veneno” não se apressa em oferecer alívio. A dramaturga holandesa Lot Vekemans sabe que algumas dores não têm cura, apenas intervalos. E é nesse espaço incômodo — entre o que foi dito e o que nunca será — que a obra encontra sua força. Não há respostas, apenas perguntas que ecoam na plateia muito depois do último ato: Quanto de um luto é amor, e quanto é masoquismo? Quando a lembrança vira prisão? E o que resta de nós quando o pior já aconteceu?

O que Vekemans escreveu, e essa montagem brasileira tão bem traduziu (trabalho de Mariângela Guimarães), é uma carta aberta sobre a impossibilidade de seguir em frente — e a impossibilidade de não seguir.

Três perguntas para…

… Eric Lenate

O texto de Lot Vekemans é marcado por diálogos cortantes, cheios de subtexto e silêncios. Como você trabalhou com os atores para que as palavras (e as pausas) carregassem tanto peso emocional?

Às vezes, na construção da tridimensionalidade de uma peça, seguimos por estratégias que podem prejudicar o texto: uma encenação com variações e movimentos muito rebuscados ou uma encenação muito calcada em recursos tecnológicos são exemplos desses perigos que podem abafar a ressonância das palavras. Eu mesmo já cometi equívocos desses tipos como diretor.

“Veneno” nos pediu algo diferente do rebuscamento. Pediu que amparássemos todo o trabalho de atuação nas palavras. Portanto, a partir de uma encenação com o mínimo de recursos tecnológicos e sintaticamente muito elementar, instauramos uma investigação quase incessante – e muito prazerosa – de cada trecho do texto e, por vezes, de cada palavra de um trecho.

É um trabalho bastante concreto o que proponho para o elenco, partindo da investigação de consoantes (musculatura do trato vocal) e vogais (o ar que utilizamos para respirar e falar). Procurei provocar a Cléo e o Galindo a enxergarem o texto como uma partitura musical, sempre buscando não somente a nitidez da mensagem, mas também a beleza sonora que poderia brotar de sua materialidade. Como os silêncios são parte constituinte e fundamental do som, da música, esses foram surgindo e habitando a tridimensionalidade da cena de maneira bastante orgânica.

A sociedade trata o luto como algo a ser superado, mas “Veneno” mostra a dor como um processo sem fim. Como fez para evitar que a encenação caísse no melodrama, mantendo a crueza do tema?

Justamente partindo desta exata premissa: o luto como um processo sem fim; a dor do luto como uma dor com a qual precisamos aprender a conviver, porque ela não deixará de existir. Falando por experiência própria, sem querer impor generalizações, sinto que o luto é um processo de entendimento e reorganização de nossa vida em torno de uma ausência, de um desaparecimento.

Nosso filho, nossa mãe, nosso mestre, nosso gatinho, nosso amor, estava ali e agora não está mais. É preciso tempo, e um tempo não quantificável para que nossa vida possa seguir funcional depois desse desaparecimento. “Veneno” abre esse diálogo de maneira muito madura ao colocar em cena duas pessoas que estão em estágios diferentes de vivência de seu luto. Lot Vekemans é muito habilidosa em propor logo de partida esse reencontro de ajustes de expectativas e acerto de contas.

Ela, assim, abre campo para que todos os debates surgidos em cena já precisem se manifestar, desde o início, com assentamento, como se cada palavra fosse a manifestação de um pensamento já muito refletido, como se cada emoção fosse a erupção de um sentimento já muito sentido. O que pode soar, em um primeiro impacto, como uma manifestação “mais crua”, “mais seca” do sentimento, mas que o público pode perceber, com o andamento da peça, que estamos trabalhando a evisceração da dor a conta-gotas.

“Veneno” já pode ser considerada um clássico contemporâneo. O que você acha que falta na dramaturgia atual para que mais textos atinjam esse status de relevância internacional?

Às vezes, sentimos que temos coisas importantes a dizer, a fazer. Mas, como dizer? Como fazer? Sabemos que tão ou mais importante do que o que temos a dizer seja como queremos dizer. A maneira como articulamos os sentidos de nosso pensamento e discurso pode ser a chave para compreender nosso sucesso ou insucesso nessa empreitada que é escrever para teatro.

Para alcançar o status de ter relevância para além da língua em que foi escrito e da época em que foi colocado no palco pela primeira vez, acredito que um texto precisa conter ressonâncias para além de sua língua e sua época. E está mais próximo desse feito um autor que consegue falar sobre a dor de uma perda ou sobre os absurdos do viver, e fazer sua fala encontrar ressonância na dor e na crise existencial de inúmeras outras pessoas.

Não existe forma definida ou definitiva para essa conquista, tampouco parâmetros concretos de aferição. Tudo passa pela intersubjetividade. Tudo depende da capacidade de argumentação e articulação de sentidos. Portanto, na ausência de certezas e garantias, o que resta é trabalhar, escrever, que em algum momento o que você tem a dizer – e como quer dizer – encontrará ressonâncias cada vez maiores e mais duradouras.

Teatro Estúdio – r. Conselheiro Nébias, 891, Campos Elíseos, região central. Seg. à qua., 20h30. Até 28/5. Duração: 90 minutos. A partir de R$ 30 em sympla.com.br ou na bilheteria do teatro (aberta em dias de espetáculos 3 horas antes do início).



Fonte ==> Folha SP

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